Ana Carolina não está lançando CD
Em entrevista exclusiva a FAROFAFÁ, a cantora e
compositora mineira fala sobre “a coisa mais maravilhosa do mundo” – a música –
e as armadilhas que se espalham ao redor.
A mineira Ana Carolina abre o riso largo e conta que
não está lançando CD novo. Estou com ela numa sala de reuniões do hotel de luxo
Fasano, em São Paulo, mas não se trata de um evento de imprensa. Ana não tem um
show ou qualquer grande novidade a anunciar.
Por que diabos entrevistá-la agora, então?
(Consideremos por exemplo que, mesmo sendo mais antigo na indústria
jornalística do que ela é na indústria musical, eu nunca antes estive com ela
ou a entrevistei, nem muito escrevi sobre sua obra? Que diabos a artista pop
está fazendo com o crítico musical antipop num recanto escuro de um hotel no
qual ele nunca teve dinheiro para se hospedar?
Economizarei os leitores de maiores explicações.
Acredito que é autoexplicativa a entrevista abaixo, realizada há um mês (em 13
de março, quando, a propósito, Daniela Mercury ainda não havia se tornado o
ícone gay do momento).
É autoexplicativa, além de potencialmente deliciosa,
tanto para fãs de música pop que torcem os narizes para críticas recalcadas de
pseudointelectuais, quanto para críticos elitistas de sofá que não suportam
ouvir uma cantora de sucesso afirmar que sobe bem alto para gritar que É AMOR e
vai de escada para elevar a dor. Isto é o que pode vir a acontecer quando os
supostamente imiscíveis experimentam se misturar. Eis-nos aqui expostos, ela
& eu, feito faquires da dor. Talvez você se divirta com os strip-teases.
Pedro Alexandre Sanches: A indústria, tanto a sua
quanto a minha, tem seus ditames, e geralmente um jornalista só tem a
oportunidade de entrevistar um artista quando ele está lançando um disco ou
fazendo um show.
Ana Carolina: Isso é chato, né? A gente fica sempre
tendo que defender a própria causa pro jornalista. Banaliza um pouco.
PAS: É uma alegria pra mim fazer essa entrevista num
outro momento, mas por isso mesmo começo com esta pergunta: por que nós estamos
fazendo (risos)? Por que estamos burlando as regras?
AC: Por quê? Por quê, né? O Horácio Brandão
(assessor de imprensa de Ana) me falou que você tinha assistido ao vídeo
de ”Un Sueño Bajo el Agua” (veja abaixo)
e tinha curtido. Fiquei superfeliz, porque é independente, não tem vínculo com
gravadora, e aí fica menos pesado, né? Ter feito esse vídeo sozinha é realmente
uma realização artística, sabe?, depois de tanto tempo na indústria, sofrendo o
impacto de ter sido uma cantora de muito sucesso. É isso.
PAS: Sofrendo o impacto? São palavras fortes.
AC: É foda, cara. Chega uma hora que você fica meio
num beco sem saída com o sucesso. Tom Zé fala uma coisa maravilhosa: a gente
tem um acordo com o público, nós vamos fazer uma canção com A, B, refrão, vocês
vão entender e a gente vai estabelecer essa relação. Aí chega uma hora que você
quer fazer outra coisa, andar pra outro lado. A gente sempre pode, mas tem essa
pressão muito pesada por ficar na neblina. Sobretudo há uma pedra que foi
arremessada há muito tempo atrás, que é a do sucesso. Foi arremessada por mim e
me acerta agora.
PAS: Você descobriu uma fórmula de sucesso, é isso?
AC: Não existe uma fórmula. Tem um público aí que me
acompanha. Eu sou uma artista que vendo o quê? No máximo 100 mil cópias de um
disco, hoje. Já vendi 1 milhão em um ano, em 2006, com o disco Ana & Jorge
(2005, com Seu Jorge) e a coletânea Perfil. Tem as pessoas que vão comprar de
novo? Pode ser que sim. Mas a gente tem isso por base, pode ser que sim, ou que
não também. O disco N9ve (2009) caminhou pra um lugar de harmonia um pouco mais
sofisticada – pensando na canção “Traição”, que fiz com Chiara Civello, mas
gravei com Esperanza Spalding e Daniel Jobim, ou no samba “Torpedo”, que fiz
com Gilberto Gil. Eu tinha um e-mail em que falava com as pessoas, com os fãs,
e fui massacrada nesse disco. Massacrada, de ficar preocupada. A árvore do
sucesso te deixa numa sombra, e se tenta sair você pensa: será que esse sol vai
me queimar? Será que consigo ficar aqui? Não, mas eu vou ficar aqui. Fiz o
N9ve, fiquei pegando aquele sol ali, mas a cada e-mail pejorativo que chegava…
Diziam “não estou entendendo onde você quer chegar”, “não vou mais no seu
show”. Criticavam a música “Era”, que é supercomplicada de entendimento, com
arranjo do Arthur Verocai.
PAS: Os fãs costumam pegar pesado assim?
AC: Voltando ao Tom Zé, existe um acordo que foi
assinado uma hora, com eles.
PAS: Essas músicas rompiam o acordo?
AC: Eu não sei. “Era” foi feita com Kassin e Mario
Caldato. Kassin lembrou do Verocai, um cara muito maneiro que tinha meio ficado
esquecido. Verocai era realmente o cara certo pra entender aquela música estranha
daquela maneira. Fez uns arranjos de cello que deixavam mais torto ainda o que
já era. Mas falei, pô, vou levar esse show pro palco, sim, eu sou esse negócio,
estou fazendo isso agora, não posso dar um passo atrás, não posso, não posso.
Joguei o show na estrada. E não durou muito tempo.
PAS: Os seja, teve menos público?
AC: Teve menos público, eu ia fazer o show uma vez e
a casa não chamava de novo. Mas esse momento foi muito importante, porque
fiquei naquele sol e não me queimei. Me sinto muito no meio do caminho. Pegam
minhas músicas pra novela, e se cabe na novela a gente pode chamar de pop, ou
popular. Aí faço uma música com Guinga, Tom Zé, Vitor Ramil, pessoas que não
necessariamente são necessariamente do pop ou do popular. Se bem que hoje em dia
o sucesso não é mais a última luz no fim do túnel. Todo mundo tem espaço. A
gente pode fazer coisas sem se preocupar com aquele formato da estante, do
disco. Soltei “Sueño Baja al Agua”, só penso em fazer vídeo agora, adoro.
Depois gravei com Guinga um vídeo pra nossa música, chamada “Leveza de Valsa”.
Editei no iMovie, um negócio muito caseiro. Até onde sei, os DVDs que fiz eram
dirigidos pela Monique Gardenberg, sei lá. Aí minha empresária viu e achou que
a gente podia botar na internet, “tá, tudo bem”. Botaram, foi legal, umas
pessoas viram, não teve muita divulgação, ninguém falou muito.
PAS: Recapitulando sua história, a gravadora
multinacional BMG lançou você em 1999. Eu trabalhava na Folha de São Paulo.
Soava como um investimento forte, pesado, numa cantora nova, pop. Hoje você
mantém vínculo com gravadora? Qual foi a trajetória?
AC: Eu não. A BMG se fundiu com a Sony e eu virei
Sony. Tenho um contrato com eles que é assim: quando quero gravar um trabalho,
tenho primeiro quem mostrar pra eles. “Se a gente não quiser, você vai pra
outra gravadora.” Tenho esse vínculo com a Sony, mas faço pelo meu selo. Montei
um estúdio em casa, onde faço as pré-produções. Estou fazendo um disco agora,
nem sei como vai se chamar, não sei se essas músicas dos vídeos vão combinar
com as outras. É legal fazer em casa, porque gravo todo dia, e posso fazer as
coisas sozinha. Fiquei muito, muito contente, porque consegui fazer um arranjo
de cordas pra “Leveza de Valsa”. Foi a primeira vez que fiz isso. E Guinga, que
é um pai (ri), gostou.
PAS: Não era assim no começo, né? Como se construiu
essa relação entre Ana, artista, e a gravadora, que a descobriu não sei como e
resolveu bancar? Fora quem conhecia você de Belo Horizonte, ainda não existia o
público nesse momento.
AC: Não, eu tocava na noite, no bar. Tocava
“Garganta” (1999), que hoje é uma música de sucesso, e as pessoas não estavam
nem aí. Tocava umas músicas minhas e fazia umas releituras que estão naquele
meu primeiro disco, tudo de uma maneira muito radical, e com uma inocência
muito grande, de garota pequena do interior. O sonho vem por cima de tudo isso.
PAS: Aquela é você? Ou naquele momento de estreia a
indústria ajudou a moldar a Ana Carolina que conhecemos?
AC: Totalmente eu. Devo inclusive ao (executivo)
Jorge Davidson, que já tinha feito um milhão de lançamentos. Ele não quer mudar
você, pelo menos comigo não teve isso, muito pelo contrário. Também é um peso,
porque é: “A responsabilidade está sobre você”. Hoje olho e vejo que não fui
enganada. Digo isso porque vejo a história de outros artistas, que me dizem:
“No meu primeiro disco falavam pra tirar música, eu não podia fazer nada”. Não
foi assim, foi uma coisa de sonho, eu era uma garota que fazia voz e violão em
bar. Fiz um show lá no coisa (a casa carioca Mistura Fina), Luciana de Moraes
(filha de Vinicius de Moraes) viu e falou: “Vou levar essa menina pra BMG”.
Jorge Davidson me chamou numa sexta-feira. Eu não podia, porque tinha um show
em Búzios, num hotel. Luciana falou: “Você não vai por causa de um show?”.
Cara, até hoje sobrevivi, estou viva e como porque faço show. Vai ter que
esperar até segunda, deixa eu garantir minha vida aqui. O sonho fazia eu olhar
pros outros artistas e pensar: pô, como é que os caras fazem?, devem chegar na
gravadora e encontrar aquele cara com aquela roupa.. Tudo muito grande. Cheguei
lá, vi que era real e que eu podia estar ali. Só não sabia que depois que fazia
programa de televisão tinha que dar autógrafo. E que as crianças correm atrás
de você na rua cantando sua música. Aí foi foda, é isso que você quer mesmo?
Porque o que mais enche o saco no nosso trabalho é tudo que não envolve música.
Até quando você tem que divulgar o que está fazendo, ficar defendendo a própria
causa. É um negócio que me deixa muito cansada, porque a gente parece camelô,
“compra aqui, é superlegal”. Tem hora que mata pegar avião, ir pra hotel, tudo
isso enche muito o saco.
PAS: Então você era de verdade, e o que era de
verdade tinha um potencial de comunicação gigantesco. Por que tinha? Você sabia
disso, ou se surpreendeu?
AC: Eu não sou uma cantora, eu sou a vontade de
cantar. Me sinto mais fazendo artesanato, e esse negocinho que é divertido
fazer aqui, com violão na mão, é que é a onda. Ficar ali com Guinga, Tom Zé,
Vitor Ramil ou Edu Krieger, grande compositor parceiro do novo disco, é o que
mais gosto: ficar em casa rindo, descobrindo um acorde, chochando o outro,
falando que o acorde está errado, “puta, essa música tá ruim pra caralho” (ri),
os conselhos… É uma tentativa de melhorar o agora da gente. A gente não sabe pra
onde vão essas canções. Tem gente que gosta, tem gente que odeia. Depois que
vai, vai. Mas naquele momento é a coisa mais maravilhosa do mundo. Depois
começa: bota num disco, vai pro palco, passa o batom, põe luz. A menina tímida
não vai poder sobreviver a isso. Ela tem que dar umas alavancas e dizer: não,
eu sou adulta, vou mostrar isso porque é legal.
PAS: Alguém tem que matar a menina tímida nessa
hora?
AC: Totalmente! É o tal do acordo. Tem o microfone,
as caixas de som, eu vou chegar às 21h, 21h15, vou entrar, com o violão, pra
tocar aquelas canções. Vou bater palmas, no final vou pedir bis, tomar minha
cerveja e ir embora. Tem uma coisa pré-escrita, resolvida, que não pode
interferir na parte divertida. Outro parceiro meu, Antonio Villeroy, que saca
muito de harmonia, diz: “Se a gente fizer o encadeamento em sétima aqui agora,
vai dar uma coisa emocional, a gente vai chegar na nota da emoção”. Aí volto à
sua pergunta no início, fórmula, né? Você sabe que existem uns caminhos que
podem te levar a essa tão sonhada e buscada fórmula do sucesso, um conhecimento
harmônico, melódico. Se você vai por aquele caminho melódico, harmônico, pode
ser que chegue na nota da emoção. Pode ser que em algum momento você consiga
emocionar alguém. O principal é você SE emocionar. No caso do “cantautor”, que
é o que eu sou, não adianta alguém dizer “esta é a nota da emoção” se eu,
quando cantar, não me emocionar.
PAS: A emoção então é o xis da questão? Você pode
provocar raiva, tristeza, um monte de sentimentos. O que é essa emoção, é a
vontade de chorar?
AC: Tudo está dentro, tudo é emocionado. Tem a nota
da emoção da canção. As canções da jovem guarda tinham uma coisa de dó, lá
menor, ré menor, sol com sétima, dó, lá menor, ré menor, sol com sétima, eles ficavam muito aqui.
PAS: Sou analfabeto musical, as suas músicas também
têm isso, ou não?
AC: Também. Várias músicas de todas as épocas, de
Beatles, de Caetano Veloso, minhas. Muitas tiveram esse encadeamento, não só
começando em dó. Você pode transpor pra outro tom, mas a relação dos acordes é
essa. Esse giro é uma coisa que pode trazer uma emoção. Pode-se fazer um hit?
Tá, podemos fazer um hit. Mas o mais legal é poder se divertir.
PAS: As canções do disco N9ve, que causaram os
e-mails zangados, têm essa chave?
AC: Não.
PAS: Por quê? Você não quis usar? Não estava
sentindo?
AC: Não é assim racional, quando você está fazendo
canções. “Era”, por exemplo, foi inspirada em algumas canções do João Bosco,
nas mais estranhas, com harmonias mais estranhas. E essa é uma música de que as
pessoas não gostaram. Não entenderam. Não estão a fim. Enquanto isso, lembro o
meu parceiro, Antonio, dizendo: “Essa música é foda, é uma das melhores coisas
que você fez”.
PAS: Era emocionada quando foi feita?
AC: Pra caralho! É outro tipo. Tem palavras que
alcançam um público maior. Palavras, e notas, assim como tudo. Se você diz
“tenho saudade”, você fala com todo o planeta. Se fala “tenho nostalgia”, já
fala com menos.
PAS: Se disser “tenho um paralelepípedo”…
AC: Você vai escolher. Não que não te emocione, mas
você vai falar com um público menor.
PAS: Sobre o contrato na hora do show. Cada um faz
sua parte, você canta, o público aplaude. O contrato é totalmente verdadeiro,
ou ele inclui ilusão, fantasia, acordos tácitos entre o artista e o público,
“vamos combinar que vou te enganar aqui e você vai gostar de ser enganado”?
AC: Será que tem?
PAS: Sou incomodado com show, o contrato me
incomoda. Não vem ao caso, mas…
AC: Há maneiras de romper o contrato.
PAS: Só vi um show seu, lá no começo. As pessoas
ficam exacerbadas, arrebatadas.
AC: O show tem uma coisa de coliseu. Bota o cara,
bota o leão na frente dele e vamos ver. Se você está no coliseu assistindo e vê
um cara que não se mexe, cagado de medo do leão, querendo fugir, não é um
espetáculo. Mas se você coloca o leão, o cara, e o cara vai pra cima do leão…
Aí o leão é você, o cara faz você pensar: “Também sou eu contra o leão, eu
também sou esse cara, vou torcer por esse cara”. Sempre faço shows difíceis de
fazer pra mim. Às vezes faço canções difíceis de cantar, que vão pra um refrão
alto pra caralho.
PAS: De fora, a sensação é de que o show é a coisa
mais difícil de todas que existem no seu ofício.
AC: É, é! Mas só assim pra eu ser esse cara com o
leão! Se não, posso fazer um show que talvez até aos críticos gostem mais.
Talvez seja incrível, e eu até goste bastante de fazer, e você vai adorar. Mas
tem que ser difícil pra mim, aquele medo antes de entrar, “eu vou entrar
naquela nota?”, “como era aquela convenção difícil pra caceta que a gente
fez?”. Isso faz com que eu suba ali. “Vai no leão!”, acho que é isso que causa.
PAS: Então é uma questão de vida ou morte, ou o leão
vai te comer ou você vai sair viva dali?
AC: Não tem saída.
PAS: Me ocorre aqui a cantora de trio eletrico,
mulheres que têm de se impor frente a uma multidão de rua, de carnaval, e vão
no vozeirão.
AC: Mas eu não faço música pra dançar.
PAS: Sim, mas você tem o vozeirão. A menina tímida
versus quem tem que domar essa menina tímida. Se a menina aparecer, o leão come
você.
AC: É. A menina tímida pode estar ali, brincando,
quando faz as músicas com os compositores.
PAS: Não temos aqui outro território que tem um quê
de farsesco, de que quando o público aceita a crítica rejeita? A minha
categoria torce o nariz para artistas de público amplo como você.
AC: É, por que vocês são assim?
PAS: (Risos.) Eu vim aqui descobrir.
AC: Por que rola essa coisa? Vamos voltar de novo ao
disco N9ve, um disco de que o público não gostou. Algumas pessoas da crítica
gostaram, e outras, não. Essa perna está meio manquinha.
PAS: É um clichê que todos nós precisamos desafiar,
não? Se o público gosta a crítica não gosta, e vice-versa. É tudo fórmula
também.
AC: Noto que, se for algo com um cunho mais sexual,
a crítica não gosta muito. Como se os críticos não tivessem pau nem comessem as
bocetas das mulheres deles. O cara não sente nada ali. É como se a emoção não
pudesse afetá-lo. E outra coisa também: quando o crítico não entende a canção,
ele tende a gostar. “Porra, não entendi essa merda, deve ser legal”.
PAS: “Essa merda é inteligente”, “eu sou
inteligente”?
AC: E aí é questionável. Eu também sinto isso, às
vezes alguém diz que tal filme é sensacional, “cara, tem que ver!”. Sou
cinéfila, vou, faço lista e anotação, já assisti a mais de 1500 filmes, mando
pros amigos. Também tenho esse espírito de porco que vocês têm, se falam muito
eu já demoro pra ver o filme, fico menos complacente. A gente é meio resultado
das pessoas que estão à volta. Sinto, por exemplo, que vocês críticos têm
amigos críticos, e não só isso, como tem pessoas que estão ao lado de vocês,
“fala mal lá de fulano!”.
PAS: Você entende que muitas vezes esse sujeito ao
lado dizendo “fala mal de fulano!” é exatamente o fã do artista?
AC: Sim!
PAS: O fã gosta que o crítico fale mal, porque aí
ele vai poder ficar contra o crítico, a favor do artista.
AC: A vida é isso, não tem jeito. Eu estava
perguntando pra um amigo que escreve, e ele estava falando de outro amigo que
também é crítico: “Se ele falar ‘não gosto’, na hora eu já vou achar que não é
bom”. Então é assim?! É um cartel? É um negocinho meio fechado.
PAS: Cartas marcadas.
AC: O Criolo, por exemplo, quando vi ele já pensei:
“A crítica vai se ajoelhar”. Tá na cara! Eu gosto do cara, tá?, fui no show e
tudo. Mas ele tem a coisa que faz o crítico falar: “Pô, é legal”. Tudo está no
ego, né? As pessoas criticam que o artista fica muito em torno de si… Acho que
foi Baudelaire que disse uma frase parecida, não sei se esta, que o artista não
pode fugir dele mesmo. Do mesmo jeito você, garoto, escutou uma música pela
primeira vez, se apaixonou, escutou outra, outra, outra. A emoção estava ali.
Tem aquele garoto que se emocionou um dia com a música, que conversa com esse
homem que agora diz coisas sobre o que ouve. Em algum momento será que você
teve que matar esse garoto?
PAS: O menino tímido versus o que está enfrentando o
leão. O crítico e, mais ainda, o jornalista em geral passam o tempo todo
fingindo que não têm emoção alguma.
AC: Fingindo?
PAS: Fingindo, porque quem não tem emoção? Por que
fui ser crítico, se não pelo que senti aos 15 anos quando ouvi Jorge Ben, que
foi a coisa mais emocionante e pura do mundo?
AC: Ainda é?
PAS: Ainda é. Mas é uma fórmula estrambólica, um
contrato equivocado, talvez. No grande jornal, na Folha, tenho que fingir que
sou o matador de leões, aquele que vê problema e defeito e erro em tudo. Eu,
por exemplo, rejeitei seu primeiro disco. Ouvi, antes de você fazer sucesso, e
falei: não gosto, é popular. Não lembro se foi exatamente isso que pensei, mas
acho que foi por aí. Talvez o modo como a gravadora me entregava já me deixasse
desconfiado.
AC: Sei.
PAS: E o que você tinha? Você é arrebatada. E eu
fugi. Saí correndo.
AC: Só que as nossas funções são muito diferentes.
Eu, como artista, sempre tenho medo de perder a menina que gostou de uma
música. Tenho medo de perdê-la. Se eu matá-la estou matando a mim mesma. Isso
eu não posso perder, porque se perder isso eu perco o fio. Perco absolutamente
tudo, inclusive o meu direito de transformação.
PAS: Eu lhe diria que os jornalistas e críticos que
têm que passar 24 horas por dia fingindo que o menino está morto estão
envelhecendo lá na Folha, e eu tive que picar minha mula, ficar desempregado,
sair do sistema.
AC: Você saiu por causa disso mesmo?
PAS: Não é que tenha sido consciente, mas saí da
Folha porque quis, por uma decisão minha. Hoje vejo que, conforme fui
demonstrando mais emoções no que escrevia, eu próprio fui achando que aquele
lugar não era pra mim.
AC: Entendi.
PAS: E não era. Deixou de ser. Enquanto isso,
acontecia no seu ofício a grande derrocada das gravadoras, que precipitou essa
situação, fez ela virar real, contingências do mercado. Hoje todo mundo é
independente, a MPB está na Biscoito Fino, não na Universal ou na Sony. É
difícil entender como essas mudanças impactaram vocês. Você com certeza ganhou
muito dinheiro, é uma artista de sucesso. Chegou a pegar aquelas histórias de
luvas, contratos milionários?
AC: Parecia bem normal. Lá no começo, o que a gente
gastou no disco foi padrão. Não tinha “vou te dar uma Mercedes”.
PAS: Ou seja, o seu leão estava mesmo no show?
AC: Mas o show é muito mais legal do que disco,
porque tem essa coisa do aqui e agora. O mais legal é você saber que tem esse
medo do que vai acontecer ali na hora, porque você preparou coisas complicadas
pra fazer.
PAS: Você está dizendo que gosta mais de fazer show
do que disco?
AC: Muito mais, muito mais. É muito mais legal. É
aqui e agora, não é aquela coisa que fica arrumadinha, grava quatro ou cinco
takes de voz, escolhe um deles. Não, é o leão.
PAS: Então o mais difícil, que é matar o leão, é o
mais gostoso também?
AC: Com certeza é. Mas o bom é que no caminho você
vai descobrindo outras coisas. Agora estou muito encantada em poder filmar,
editar, mexer no famoso Final Cut. Edito tudo, fico até cinco horas da manhã,
sem tomar água. É muito bom, e é mais uma independência artística. É muito bom
não ter que fazer só um disco. O que você acha de, ao invés de lançar um disco,
ir lançando píllulas? Você acha que é isso?
PAS: Não sei dizer, mas tudo que seja novo e ousado
é… novo e ousado.
AC: Mas você acha ousado?
PAS: É, no sentido de o que o seu fã vai achar. O
que ele tem achado?
AC: Não sei…
PAS: O disco Dois Quartos (2006) era duplo, dividido
entre o Quarto e o Quartinho. Que conceito era esse?
AC: Aí é como nadar, nadar e morrer na praia, porque
depois o público não gosta do Quartinho, vocês gostam do Quartinho, não gostam
do Quarto. O crítico prefere o disco mais esquisito, e o público gosta do mais
pop.
PAS: Aconteceu isso? O clichê se confirmaou?
AC: Nesse caso, sim.
PAS: E você estava tentando agradar as duas turmas,
talvez?
AC: Não, eu estava tentando agradar a mim. Eu vivo
nesse meio do caminho. Fiz uma ou várias músicas estranhas, e também canções
que hoje são conhecidas e foram regravadas por algumas pessoas. É óbvio que um
cara que escuta muita música se sente mais tocado por estranhezas, não é por
mal. É porque é novo, e o ser humano é assim. Chama atenção, gera curiosidade,
você quer saber mais. (Ana mostra no computador o vídeo com Guinga, ainda
inédito.)
PAS: Guinga é complicado, o grande público não
consome, né?
AC: Infelizmente não, porque ele é um cara incrível.
Toca violão pra caralho. Um instrumentista, não lembro quem, falou que trocaria
todo o universo dele pelo do Guinga, e acho que eu também. É foda, um cara
muito pica, bicho.
PAS: O vídeo é preto-e-branco, de repente começam a
aparecer algumas cores. É possível conciliar tudo, público e crítica, sair do
preto-e-branco chapado?
AC: Não sei. Eu adoraria que isso fosse mais
possível, mas acho que vai ser sempre assim. Quando uma canção trouxer mais
informações vocês vão gostar mais.
PAS: Mas o contrário disso seria dizer que o público
gosta de mesmice. É verdade?
AC: Não, acho que não. Mas pode ser que, no meu
caso, eu abra para um novo público. Uma canção como essa com Guinga abre para
uma pessoa que de repente não gostaria de escutar “Quem de Nós Dois” (2001).
Não vou passar minha vida assim. Me incomoda um pouco esse negócio de ficar só
no popular.
PAS: Você se referiu ao sucesso popular como uma
sombra. Por quê?
AC: Porque você fica engessado. Não vou ser
hipócrita de falar que não é legal ser reconhecido. Sinto que tem um público
flutuante, que gosta de algumas músicas minhas, e tem o público fiel. Às vezes
o fã que é fã mesmo gosta disso: “Cara, você está escutando a música da rádio,
tem que escutar esta aqui, porque é especial”. E tem o público que está
passando ali em frente à casa de shows e fala: “Que música ela canta mesmo?
Gosto daquela com o Seu Jorge, vou lá”. Tem que lidar com os dois tipos de
pessoas. Eu não deixei de ser aquela que cantou “É Isso Aí” (2005), que foi um
sucesso. Mas também não posso deixar de ir pro lugar onde quero ir, de
esmerilhar os cinco acordes que o Guinga me deu alguns anos atrás e falou “faça
alguma coisa com esses acordes”. Na época que me deu, eu não tinha condição de
fazer uma música com os acordes dele. Eu não sabia direito, e isso me fez
amadurecer muito, demorei dois anos pra fazer. É preciso sobretudo não ter
medo.
PAS: O momento em que você começa a construir um
disco novo é de angústia?, inclusive de possivelmente vir a receber e-mails
malcriados de seus fãs?
AC: Não vou dizer que não vá ficar triste se isso
acontecer, mas estou um pouco mais forte em relação a isso. Eu sei que posso
fazer e que não vou morrer por causa disso. Sei que essas músicas não são
radiofônicas, embora eu quisesse muito.
PAS: Isso não depende também de se elas vão para a
novela ou não? Se for para a novela, ainda que for esquisita, a música vira um
sucesso?
AC: Pode ser que sim, pode até ser. Pô, essas duas
músicas deviam entrar na novela, numa novela de muito sucesso, pra que elas
pudessem chegar. Mas eu não sei, não.
PAS: Você antes citou seu conterrâneo João Bosco. A
sua trajetória não repete um pouco a dele, de alguém que começa muito popular,
vai se sofisticando, se torna mais hermético. É uma dicotomia que também não é
legal. Você vai se incompatibilizar com o público que primeiro te acolheu? Por
quê?
AC: Mas acho que o público muda também. Aquele cara
que me ouviu há quatro anos não é o de hoje. O público muda, e às vezes o
artista tem uma funçãozinha… Tem uma facção do público que pode gostar só das
baladinhas mais água com açúcar, mas se nesse mesmo show toco “Era” e ele passa
a entender. É o negócio do peixe, a iscazinha que pega o cara. E também o
contrário, vou falar com o fã no final do show, e tem pessoas superpreaparadas,
“você conhece aquela música que o cara tal gravou em 1940?”. O cara pesquisa,
gosta de música, está ali e te dá uma informação.
PAS: Você educa e é educada por seu público?
AC: É, a famosa troca, nós nos educamos, nos
alimentamos de alguma coisa, nos amamos, nos odiamos.
PAS: Você tem um disco de parceria, que poderia ser
com vários artistas, mas é com Seu Jorge. Por que Ana & Jorge, por que essa
parceria preto-e-branca?
AC: Eu e o Jorge sempre tivemos muita simpatia um
com o outro. Ele participou do disco Estampado (2003), a gente fez junto o
“Beat da Beata”. Aí tinha um projeto acústico, voz e violão, e chamamos o
Jorge. Fiz a versão de “É Isso Aí”, eu e Jorge gravamos, achamos que ia ser um
negócio legal, mas, caralho, aquela versão-parceria vira a música que as
pessoas pedem pro bis! De uma hora pra outra, viramos os caras daquele ano,
ganhamos melhor disco em prêmio. Eu sabia disso? Ele sabia disso? A gente não
sabia. Eu achava que não passaria daquilo. Não. Aconteceu, virou um puta dum
sucesso, com uma música que as pessoas até hoje choram no show quando vou
cantar. E aí, a fórmula?, que eu há 20 minutos disse que pode existir ou não?
Como assim?
PAS: Deve ter sido interessante promover o encontro
de dois públicos que parecem ser tão diferentes.
AC: É, tinha um blog na época, de uns caras que
falavam mal do disco de todo mundo, eu olhava porque achava engraçado. O cara
botou a capa Ana & Jorge e escreveu: “Quem falou que combina?” (gargalha).
Eu ri muito. Ele faz samba-rock, ela não tem nada a ver. Aí é que está uma
coisa meio descompensada, do íntimo, dos parceiros. Acho que o Jorge, até
então, não tinha conseguido mostrar o cantor de balada que ele podia ser.
PAS: E você? Tinha algo que não tinha mostrado ainda
e conseguiu ali? O suingue da Ana Carolina?
AC: Acho que não, não sei se mostrei alguma coisa
diferente.
PAS: Vocês trazerem a público a afinidade que têm na
intimidade é algo que eu chamaria de ousado. Se leva alguém a escrever “quem
disse que combina?”, é sinal de que não é óbvio.
AC: É, não era óbvio, não. Por isso que era
engraçado.
PAS: Mas sempre me soa como um encontro entre o
movimento negro, o movimento feminista e
o movimento gay, todo mundo junto, sem dizer isso explicitamente.
AC: (Gargalha) Você acha que naquele show a gente
estava meio representando as minorias?
PAS: Sim, era um show de minorias.
AC: Marco Feliciano não entraria naquele show (ri)?
PAS: Ele não quereria ir. Eu diria mais, ele
amaldiçoaria aquele show (risos). Por falar nisso, você virou polêmica porque
se disse bissexual na revista Veja. Passado algum tempo, como vê aquele
episódio?
AC: Cara, eu não quero ser polêmica. Isso chama mais
atenção de um outro lance que não a música.
PAS: Reflete a disposição da imprensa com você? Em
geral eles, ou melhor, nós não queremos falar da sua música.
AC: (Ri.) Por que será?
PAS: A revista Veja é sempre perigosa. Você se meteu
naquilo.
AC: Olha, eu gosto muito do Sergio Martins, e ele
botou exatamente o que eu falei – não tem uma vírgula que eu não tenha dito
ali, muito diferente de outras entrevistas que dei que rolou muita vírgula,
muita coisa estranha. A única questão é que eu não estava levantando uma
bandeira, porque é um preconceito ao contrário, quando você fala “nós, os bis,
os gays, somos isso”. Se estabelece mais uma vez a luta, a diferença. Isso eu
não fiz. Eu já tinha até falado sobre isso, comentei com o jornalista que “a
minha namorada me trouxe”, ninguém dá atenção. Com Sergio foi alguma coisa
parecida, em determinado momento eu disse “estávamos eu e minha namorada”.
Quando vi, aquilo virou uma coisa.
PAS: É outro contrato tácito, de o jornalista não
perguntar e não publicar se o artista disser algo.
AC: Eu não tenho vergonha e nem problema de falar
sobre isso, porque não posso ter problema e nem vergonha de mim. Não tenho nada
contra quem quer esconder e fazer da vida pessoal uma caixa de segredos, mas…
Não tem coisa mais íntima que eu dê pro jornalista que a minha música. Falar de
bissexual, não.
PAS: Sou gay, e avi ali se incitar um lado
reacionário também dos gays, “não, ela está mentindo, ela não é bissexual, ela
é só gay”. Falou-se muito isso, como se você estivesse mentindo pra se
promover.
AC: Aí é que está, se é mentir pra se promover, pra
que dizer “sou bi”, né? Aí não precisa dizer nada. Gosto da colocação quando
ela é real, porque as pessoas sentem que é e você estabelece uma conexão de
verdade, intensa e de verdade. Se eu dissesse ali “sou gay”, “só sou gay”, eu
estaria mentindo.
PAS: E aquilo virou um escândalo invertido, por
parte de quem supostamente deveria admirar sua colocação.
AC: E só piorou, porque passou um tempo, eu estava
na balada e fiquei com um cara. Tiraram uma foto e colocaram não sei onde. Nem
teve tanta repercussão, saiu numa dessas revistas. Mas teve umas fãs falando:
“Porra, homem, cara? Putz”. Mas eu não ia deixar de beijar o cara porque, ah,
não pode.
PAS: Essa parte dos paparazzi é chata?
AC: É um pouquinho,
porque você fica meio vigiado. Sou abordada de uma forma muito carinhosa
e respeitosa pelo público, não tenho do que reclamar. Mas quando você está num
lugar público, numa fila de aeroporto, rola um paparazzi sem registro das
pessoas em volta. Rola um certo deslumbre com o artista. Todo mundo é muito
besta, né? Eu sou fã do Chico Buarque, acho ele foda. Encontro com Chico, fico
tímida, nervosa, “o que eu vou falar com esse cara?”. Depois que quebra aquele
gelo, ele é supersimpático, relaxado, tranquilo… Eu olho como ele fala, o que
ele falou, que é uma coisa de fã também. Eu prefiro aproveitar? esse momento e
ouvir. Sentir aquela energia me alimenta bastante.
PAS: Como fã você tem a vontade de tirar foto ao
lado dele e mostrar pros seus amigos
AC: (Ri.) Ah, seria legal, como não? Imagina. Mas,
mais que aquele instantezinho em que você tira a foto ali, é mais legal, não
é?, você deve ser fã de alguns…
PAS: Nunca peço pra tirar foto, mas às vezes tenho
vontade.
AC: Você tem vontade? Mas, quando você está perto de
alguém de quem você é fã, não é legal ver o que ele fala, como ele pensa a
vida, aprisionar esse momento pra entender?
PAS: Pra isso se inventou minha profissão, eu vou lá
fingindo que estou lá para fazer várias perguntas inteligentes…
AC: (Gargalha.) Muito bom, cara.
PAS: Cada um inventa seu papel, mas todo mundo é um
pouco fã, um pouco artista, um pouco crítico, um pouco dono da gravadora…
AC: Você não acha que tem muita vaidade no crítico,
no cantor, no ator? É uma vaidade do caralho.
PAS: Como foi participar do Saia Justa?
AC: Foi difícil, difícil mesmo. Quando aceitei eu
não sabia o que era. Aí senti na pele o que é estar lá e fazer. Gostei muito
dessa época, de trabalhar com as meninas, de ter estabelecido uma relação com a
Márcia Tiburi, a gente sempre ia pro hotel, jantávamos, depois me aproximei
muito da Beth Lago, somos amicíssimas até hoje, da Maitê Proença. Mas, na hora
que eu estava ali, tinha dia que eu não estava a fim de falar naquele assunto,
entendeu? Aí eu não falava. Eles me davam umas folhas pra eu ler antes o que
era o assunto que ia falar. Teve um dia que eu dormi no ar, devia estar cansada
de algum show. Era um assunto que não me interessava nada, fui ficando assim,
assim… Eu via que a câmara estava virada pra lá. Um dia tomei uma bicuda da
Beth, pou! Meu pé voou, ela começou a rir, eu comecei a rir, a Mônica Waldvogel
viu que tinha um movimento, disse “e você, Ana?”, eu lembrei da folha, “7% da
população…”. Em alguns momentos, não vou negar, como eu não queria falar sobre
certas coisas, eu falava o que tinha lido ali de informação um pouco antes.
PAS: Você lembra que me deu uma bronca no ar uma vez
(risos)?
AC: Lembro, lembro. Lembro, porque você é um cara
odiado por muita gente, né?
PAS: É? Que saco.
AC: Sim! Imagina, não diga, né (ri)? A gente ia
falar da crítica, eles me perguntaram, eu falei o Pedro Alexandre, porque era o
cara mais polêmico. Me ocorreu o Pedro porque o Pedro é um cara que fala mal de
um monte de gente, de todo mundo. Veja bem, eu não quero aqui desprestigiar
você, que é um estudioso, escuta muita coisa.
PAS: Fique à vontade (risos).
AC: É… Mas acho que com relação a essa postura de
falar mal, falar mal, falar mal, você conquistou um lugar nisso que é esse que
você falou que nem sempre acho que é sincero. Parece que você estava na Folha
de São Paulo, alguém perguntava: “Quem vai falar mal de fulano?”, e você pegava
e falava mal. Vamos meter o pau aqui, que as pessoas vão comprar mais jornal. É
como faz alguém que quer vender música fácil e colocar música estourada na
rádio, fazer facilmente uma coisa pra vender.
PAS: Você entende que é exatamente do jeito que você
descreveu, mas que esse diálogo nunca aconteceu? Ele é tácito, eu sabia que
tinha que fazer isso, mas ninguém me contou, nem eu sabia que sabia. Mas era
exatamente assim.
AC: Entendi.
PAS: Se você for olhar no noticiário de esportes, de
economia, de política…
AC: É assim.
PAS: Faz sucesso, na minha profissão, quem fala mal.
Não é mais assim, a indústria jornalística também está desmoronando,
desmoronou. Há muito tempo eu não sou mais esse cara, é a memória que continua.
Eu queria terminar falando isto: você está dando uma entrevista para o
FAROFAFÁ, meu site sobre música brasileira, que infelizmente é bastante
anticomercial. Por que você está dando uma entrevista pro FAROFAFÁ?
AC: Porque Horácio disse que você tinha gostado do
vídeo.
PAS: E ele me disse que você gostava do FAROFAFÁ
(risos).
AC: Sim.
PAS: Foi um golpe de marketing dele (risos)?
AC: Não, não foi, não. Eu gosto de ouvir o que vocês
dizem, até quando falam mal.Em alguns momentos alguns críticos, talvez até
você, falaram coisas sobre mim que foram boas pra minha evolução musical. Nisso
tenho que realmente baixar a guarda e dizer que foi importante isso. Agora, eu
acho que em alguns momentos vocês mesmos se banalizam, “se é fulano, então vou
falar mal”. Vocês não sabem que criticam as obras, mas mais tarde serão
criticados por ela. Quantos idiotas falaram mal do Tom Jobim, cara? Caralho, é
um negócio vergonhoso, o cara deve olhar pra trás e querer rasgar.
PAS: O mais célebre é o José Ramos Tinhorão, que
entrou para o folclore, mas tem lá sua importância também.
AC: É, mas aí de repente esse aspecto é que chama
atenção, vai ficar pra sempre como aquele cara que falou mal…
PAS: É bem ingrata essa posição.
AC: É, total. Do mesmo jeito que o sucesso me
engessa, você fica engessado como cara maldoso, que bate em todo mundo sem ver.
PAS: Estamos meio falando de afetos mal-assumidos,
talvez? Quando você me deu uma bronca no Saia Justa, tomei como um afago, de um
jeito avesso – ela se importa de algum jeito. E vale no espelho também. Quem
fala mal de você tem algum tipo de afeto por você, talvez no negativo. É
evidente em relação ao Tom Jobim, que despertou o despeito do Tinhorão, ou
sabe-se lá quais outros sentimentos ou emoções.
AC: Mas acho imperdoável o cara ter falado mal do
Tom Jobim. Acho im-per-do-á-vel. Não há nada que ele tenha feito de bom antes
ou depois disso que vá cobrir um negócio desses, sabe? Porque Tom Jobim é O
nome da música no Brasil. \Se nós somos respeitados a gente deve tudo ao Tom
Jobim, ao João Gilberto, à bossa nova, entendeu? É imperdoável o Tinhorão falar
mal do Tom Jobim.
PAS: Eu escandalizo você se disser que não tenho
nenhuma dúvida de que Tom Jobim é inquestionável, mas pessoalmente acho ele um
mala?
AC: Mas mala por quê? Você não gosta da música? O
que aconteceu depois do Tom Jobim de mais importante?
PAS: Gosto, mas não aguento ouvir. Já passou, não
consigo mais. Digamos assim… É muito fácil falar que Ana Carolina é chata, mas
falar que Tom Jobim é chato…
AC: Então, faz mais sentido falar que eu sou chata
que o Tom Jobim!
PAS: Ou não. Eu poderia fazer “sucesso” falando que
Tom Jobim é chato. Mas é um “sucesso” ingrato, o sucesso do urubu.
AC: (Gargalha.) Sucesso do urubu total. Uma hora na
história fica estranho pra algumas pessoas, depois que disseram ou fizeram
determinadas coisas. A história é muito cruel. Acho que vocês são corajosos ao
dizer determinadas coisas de determinadas pessoas. Tem uma responsabilidade,
porque você tem um público que te escuta. Eu sou uma pessoa que quero saber o
que você está dizendo sobre algumas coisas. Talvez eu, e tantas outras pessoas
por aí, veja ali o que você está dizendo e tente ver um pouquinho pra além do
que você está escrevendo. (Silêncio.) Entendi.
PAS: Indiretamente, você pode estar falando de si
mesma quando cita as críticas a Tom Jobim?
AC: Não, eu não criei a bossa nova, cara. Não espero
que estudem a minha obra. O que eu quero fazer hoje eu faço agora, que bom que
há pessoas que ainda querem ouvir, ótimo. Mas o Tom, o Guinga, cara, eu sou
fanática por essas pessoas.
PAS: Você tem ídolos mais da faixa do sucesso que do
prestígio?
AC: Olha, de escutar, parar pra ficar escutando uma
coisa muito popular, hoje não. Hoje não. Não posso te falar isso. Antes eu até
ouvia umas coisas mais populares, pô, essa música é bem feita, isso aqui não é
tão ruim. Mas hoje, não. Bom, tenho escutado muito o Recanto da Gal Costa e do
Caetano. Gosto muito desse disco e acho ele popular.
PAS: O chamado grande público desconhece… Você fala
de Jobim como influência, exemplo, mas lá no seu começo estava mais para Roberto
Carlos do que para Tom Jobim, não?
AC: Embora no primeiro disco tivesse regravado uma
música do Jobim (“Retrato em Branco e Preto”) e não uma do Roberto, né? Você
acha mesmo que meu disco estava mais para Roberto Carlos? Que honra.
PAS: No sentido de comover multidões. O que você
tinha a dizer ecoou forte. Roberto Carlos era, e de certa forma ainda é, muito
rejeitado pela crítica, que engole ele meio forçada.
AC: Cara, seria uma honra, até hoje seria uma honra,
mas acho que não. No começo até tinha uma coisa alternativa, de ir uma
galerinha tatuada de roupa preta nos show, cantando “Garganta”. O segundo disco
até vendeu mais, ali sim até cheguei num negócio mais popular. Você acha mesmo?
Eu preferia que a análise do meu trabalho fosse feita depois que eu morresse,
sabe?
PAS: Vai ser. Mas você tem direito de ouvir tas
análises, enquanto está viva.
AC: No primeiro disco havia a novidade ainda, fui
mais massacrada no segundo. Aí é que foi o momento que devem ter metido mais o
pau.